Edital

quilometragem insuficiente
confiança no taco de quem
só o que vejo é terceiro
não tenho mais que palavras
sou título e incerteza

submundo onírico, brilhante
corridas descompassadas, não justas
métricas para máquinas
parecem fazer sentido nesse microcosmo
a fuga é a recompensa é a doença é a conquista

sangue empregado no percurso
vitórias em lattes e timelines
indimensionáveis fora do contexto
solitária, contra o tempo, monólogos
monotemáticos
páginas sem sabor nem cheiro

se medalha vale de algo fora do pódio
se tem vida a ser descoberta
do lado de fora
ou se a arena continua
e se ela valerá a pena
quais as diretrizes do porvir?

feed

engulo minha ansiedade sem mastigar direito
embalagens de besteira têm fundo
submerjo sem encontrá-lo
restos se acumulam nos cantos

não tem mais feed a ser visto
nada a atualizar
nem acho jeito de dar f5 em mim

rostos, corpos bonitos na tela
flerto com máquina
sem conexão que o valha

interações demais
mas os dedos só tocam a tela

não me deixo relaxar do passar das horas
alarmado
notificações que não se deixam desativar
o que tinha a fazer
tarefas, como feeds, intermináveis

todo lugar, um lembrete da era de trevas
tempo esperançoso virou mito
só se deseja desesperadamente sobreviver
que o dano não seja tão catastrófico

empatia é máscara da profissão
tanta tragédia alheia que ouço, busco ajudar
todo meu nada e caos interno que gritam, silenciados

o fone, no crédito ou no shopping trem, é descartável
não consigo me ouvir e não sei o que sairia se conseguisse
o ruído branco no lugar do incompreensível

o que é que sobra se tirar o que é obrigação e expectativa
será que ainda tem alma nesse amontoado de “tem que”

a vida suspensa em nome do que é prioridade
que diabos fazer quando a vida começar
e o pavor de já ter passado demais
sem saber responder o que é que eu realmente quero

o que é que eu realmente quero?

aceitar o sentido invisível por trás de tudo que há
o mundo é esse tanto do que não foi descoberto e do que não se compreende
tentamos traduzir

deve ter explicação lógica dialética sociohistórica etc
alguma autora que desconheço deve ter explicado brilhantemente, creio
tento aceitar a incompreensão só por hoje
em vez do inaceitável e inconcebível que a realidade virou

sigo no aleatório
interrompido por propagandas e avisos do que não foi pago
talvez a próxima valha a pena
uma hora o insight, a troca real ou o like vem

Expectativas

essa esperança subconsciente de que cenários improváveis impossíveis estapafúrdios aconteçam
é em si mesma um equívoco delirante

e por quê soterrar o outro em utopias
ou condenar-se a esperar o que jamais foi prometido?

gente alguma se dispôs a realizar o que foi arquitetado
se o fizesse, apostaríamos quão pouco duraria
buscar ideais é varrer calçadão de praia

parece querer mudar a outra
afinal, nós – não ela – sabemos o que é bom
cada ajuste a ser feito para chegar à perfeição, visualizado com nitidez
parece faltar-lhe só um pouquinho de boa vontade

mas ser cativo das vontades alheias é o pior sacrifício
ser higienizado é traição à própria essência
não é justo ser esterilizado de tudo que te faz você (só para que brilhe aos olhos de alguém)
abrir mão de si é tamanho desrespeito com a própria história
imposição é violência

será que o desejo real é uma marionete?
um espelho mágico de histórias infantis?
alguém que mimetize apenas condutas que agradem?
se lavagem cerebral ou I.A. estivessem ao nosso dispor, em quanto tempo escolheríamos materializar a ideia de pessoa perfeita, a despeito da pessoa real?

falta razoabilidade

aceitemos quem o outro é, o que deseja e escolhe
aprendamos a lidar com o que é e o que existe
ainda que a concretude nos contrarie
que as escolhas partam de reconhecimento, antes de violação
quando se é livre, segue em paz

que haja lucidez para almejar o saudável, o possível e o recíproco

Frame

igual a lentes de caleidoscópios
cada movimento, uma nova configuração colorida e inédita
jamais poderia ser aquele que fui nos tempos de liberdade e totipotência
bem registrados, como deve ser
de pure heroine a 17.mp3

o novo é também legítimo
jamais perfeito, sempre o melhor possível
registro conforme consigo
senha esquecida em tumblr-diário, passou a se fazer ‘buzzfeed’ no medium
tempo de melodrama e de wikihow
ao custo da poesia, que quase não mais se vê

o futuro virou presente e os planos viraram cotidiano
é de pensar que o antigo se foi (morto, substituível?)
aquela série confusa dizia que passado, presente e futuro não são cronológicos
interdependem-se e simultâneos
aqui sou e fui e serei – imediatamente
agora
e sempre

Algo doentio e algo saudável

Olá, nova terapeuta!
Acho diferente estar com uma analista que também seja mulher. Minha primeira terapia foi bem interessante, há alguns anos, com uma psicóloga. Mas foi curta: ela enxergava muito além do que eu conseguia ver na época. Já com meu último psicanalista, percorremos um longo e doloroso caminho – foi ótimo, bem construtivo. Só nunca consegui verbalizar certas coisas com ele. Era hora de mudar.

Pois, há meses que salvei um vídeo para mostrar a você. Sabia que tinha nele mais elementos do que eu podia entender sozinha. Vamos assisti-lo – antes mesmo de eu fazer toda a chatice de me apresentar (como se você já não tivesse lido os prontuários e relatórios a meu respeito, de qualquer maneira). Continuar lendo “Algo doentio e algo saudável”

Verbalizo

Não é que eu queira romantizar o que é problemático
eu não quero
que ninguém veja
como desejável, engraçado ou cool
toda a desgraceira que quero evitar

sei que o relato real (ou os exageros de metáforas) podem ser gatilhos

poesinha, por vezes, é possível eufemismo pra martírio
o desabafo disfarçado de humor faz parecer menor a tormenta
minha intenção nunca é banalizar ou incentivar autodestrutividade

mas é que às vezes preciso desabafar, que
é muito veneno pra uma alma só
preciso cuspir o que faz mal
aliviar esse peito
não pra que outros se intoxiquem, mas pra
que eu não morra engasgado
sofrimento não precisa nem deve contagiar
mas que seja respeitado
humanização é linguagem

transformar dor em verbo já é bem difícil
se distancie se te fizer mal
procuremos toda ajuda da qual precisarmos

a escrita e a fala podem não me curar
mas simplesmente conseguir elaborar já ajuda um tantinho
a me reorganizar

Filtros

melhor que frieza arrogante, intensidade
mas obsessão só traz desgaste
sufoco e indiferença são ineficazes

se o coração não sente o que os olhos não veem
apenas distância entre mim e o nocivo
minha ansiosa palpitação, eu que sinto

quem quer mentir, omitir, machucar vai fazê-lo
a responsabilidade pela ação é de quem agiu
oras

me cabe o autocuidado, administrar como o externo me afeta
pode ser o mundo o caos que for
eu que trate de me respeitar

Resistor

eu sou o chuveiro que não tem meio-termo
sei que adora o calor
deixo a pele vermelha e o box cheio de fumaça
às vezes tão quente, o toque vira aversivo
tentaria não te queimar
mas você, então, acharia frio
estremeceria, querendo de novo ser esquentado
você sempre vem se banhar, enfim